quarta-feira, 18 de setembro de 2013

Diários e Halls



Ontem comi uma bala Halls e me lembrei do meu pai, da minha infância. Me lembrei que o carro dele sempre cheirava a bala Halls e a cigarro, e viajávamos de ar condicionado enquanto ele não fumava, e quando ele acendia o cigarro, ele abria as janelas e a fumaça vinha toda na minha cara, e eu odiava. Uma coisa que mudou daquela época pra cá: Meu pai parou de fumar. Uma coisa que continua a mesma desde aquela época: Eu inda odeio fumaça de cigarro na minha cara. Odeio.
Há dias tenho tentado escrever algo pra postar aqui. E já escrevi muita coisa, na verdade, mas o fato é que não consigo publicar, quando termino, só deixo arquivado. Talvez esteja na hora de voltar as minhas origens, de quando eu escrevia em cadernos grossos que acabavam em uma semana, e levava-os pra todos os lugares comigo, morria de medo que alguém lesse. Eu ainda tenho aqueles cadernos, estão todos na casa da minha mãe, e eu ainda morro de medo que alguém leia. Provavelmente ela já leu, ou talvez não. O motivo da minha dúvida é que quando eu tinha uns 11 anos, esqueci um diário meu no banheiro uma vez, um dos diários que eu levava comigo pra todo lugar. Quando dei falta do diário e fui perguntar dele pra ela, ela não me respondia, não falava comigo, nenhuma palavra, nem ao menos olhava pra mim, nada. Ela havia lido. E não havia gostado do que havia encontrado. Eu nunca fui uma mera criancinha que escreve sobre como papai e mamãe são perfeitos. Na verdade a escrita surgiu pra mim como um escape de todo o ódio que eu sentia deles, da minha vida naquela época, e era muito mesmo. Mas ao mesmo tempo, amava os dois, de uma maneira que não conseguia suportar a ideia de que um deles pudesse ver todas aquelas coisas terríveis que eu escrevia sobre eles, e daí vinha o medo: E se um deles lesse e parasse de me amar? A maioria das coisas que eu escrevia era verdade, mas eu também não queria me prender a todas aquelas verdades, queria ilusões, queria mentiras que pudesse amar. E eu tinha mentiras para amar, e algumas verdades também.  E nos momentos em que as verdades ruins ficavam próximas demais, despejava todas elas no papel, e então conseguia respirar. Mas aquilo era meu, era o meu mundo, o meu refúgio. Ninguém poderia ler. 
Além do medo que eu tinha que alguém lesse aquilo tudo, tinha também o sentimento de posse. Eu sempre fui muito possessiva com as minhas coisas. Quer dizer, a maioria delas eu acabo deixando de lado em algum momento, como roupas, sapatos, essas coisas. Mas quando se trata de cadernos, fotos, ou qualquer coisa que seja algum tipo de lembrança, eu me agarro, me agarro, me agarro. Escondo tudo, mas carrego tudo por aí. Provavelmente nunca joguei um caderno ou diário sequer fora, e nem pretendo. É quase como se, se eu jogasse fora, minha história, minha trajetória até aqui, deixasse de existir, e isso me apavora. Pois se um dia quero chegar em algum lugar, tenho que me lembrar de onde vim. E todas essas coisas materiais e empoeiradas servem pra me lembrar quando minha memória tem momentos de branco, servem pra me lembrar que não posso esquecer de onde vim, não posso esquecer do que tinha, não posso me esquecer do que passei, não posso esquecer de quem eu era. Isso tudo foi impulso pra me colocar onde estou agora, assim como o agora está sendo um impulso pra me colocar em algum outro lugar, em algum dia. Sim, sou tão obcecada com o passado quanto quero pular direto pro futuro. Talvez o meu maior defeito seja nunca viver completamente feliz no presente, eu não consigo. 
O fato é que a história com a minha mãe foi muito tensa. Ela ficou muito magoada, e eu também. Ela havia ficado magoada pelas coisas que eu havia escrito dela, e eu havia ficado magoada  por ela ter lido, ter violado esse meu pequeno espaço particular que eu sempre fiz questão de não dividir com ninguém.  E também havia a raiva que eu sentia de mim mesma por ter escrito tais coisas, talvez essa raiva tenha sido maior do que a mágoa por ter sido "violada". Ela arrumou todas as minhas coisas e estava decidida a me mandar morar com o meu pai. Mas a situação era ainda pior com ele, e nessa época eu tinha uma madrasta que era o capeta, então a última coisa que eu queria era ir morar com o meu pai. Pensar nessa possibilidade me fez chorar por uma semana direto e minha mãe também, tenho certeza. No fim, ela me desculpou, é claro. Uma mãe nunca consegue ficar muito tempo com raiva de um filho e também não consegue se afastar de um filho. Mas nós duas aprendemos lições: Ela aprendeu a nunca mais mexer nas minhas coisas sem permissão, não importava a idade que eu tivesse, assim como também passou a não fazer mais isso com os meus irmãos, porque, você pode se arrepender de ter procurado por algo quando finalmente encontrar. Se você não sabe, é por algum motivo, então é melhor deixar como está. E eu aprendi a nunca mais deixar meus cadernos ou diários a mostra, mesmo que não escrevesse sobre ela, ou sobre nada de raivoso. Eu escondia ainda mais, ainda escondo. Não gosto de ninguém mexendo nas minhas coisas, entrando nessa parte do meu mundo. Quando alguém tenta fazer isso, algo em mim desperta, algo que me transforma numa pessoa completamente na defensiva e pronta pra atacar. Não se entra no território de alguém desse jeito, nem mesmo sendo da família. Independentemente de graus de parentesco, somos todos pessoas individuais, com nossos próprios sentimentos, sonhos e personalidade. Invadir sem ser convidado é quase como um roubo. Roubo da escolha de alguém que não quer ser invadido, ou que não está pronto ainda. Respeito é uma coisa de alto nível, tão alto, que poucas pessoas conseguem alcançar. 
Já a lembrança da bala Halls é boa e ruim ao mesmo tempo. Ela vem dessa mesma época do super drama que tive com a minha mãe. É boa porque me faz lembrar o meu pai, o Monza que ele tinha, tudo aquilo que representava ele. Mas é ruim por todas as coisas ruins que vinham com ele. Lembranças são lembranças, não podemos nos livrar. Eu já aceitei isso, e por esse motivo, deixo todas elas guardadas, mais perto de mim do que deveriam: Eu aprendi a conviver com elas. Todos precisamos.

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