segunda-feira, 28 de dezembro de 2015

Assombração


Tantos anos depois, 
Um estranho no ônibus usa o seu perfume 
Automaticamente lembro do seu nome
E da maneira como você costumava me chamar 
Pra me abraçar no meio da multidão... 
Suas doces mentiras que eu adorava acreditar... 
Minha pele, sua pele, nossa pele 
Eu, você, seu perfume 
E como eu morri mil mortes depois.

Superei, segui em frente, juntei meus cacos 
Mas aqui estou eu 
Perdida nas memórias de nós dois 
Porque um estranho no ônibus está usando o seu perfume.

Anos atrás, e esse perfume ainda me faz mal. 
Tanto tempo, tanta coisa antes do que eu sou agora, superada, melhorada, mudada 
E esse perfume ainda me intoxica, mexe com minhas estruturas, me embrulha até o último pedaço do meu estômago.
Universo, o que você quer de mim, afinal?
Porque me tortura com minhas lembranças absurdas?
Essas lembranças que invadem minha pele, me deixam tonta, me jogam no chão...

Eu superei (acho que sim) 
Mas se colocar na minha frente não vou saber reagir... 
Não sei fingir indiferença a o que me afeta 
Não sei lidar, não sei colocar isso no patamar do que não interessa.
Então por que?
Porque essas coisas continuam vindo
Ressurgindo do nada anos depois 
Me procurando sem razão nenhuma 
Me atormentando? 
Não quero nada disso
Apenas pare os meus sentidos!

Você está tão longe agora 
E eu fugi há muito tempo atrás. 
Você nunca veio atrás 
E eu sofri calada. 
Vi você conseguir tudo o que queria 
Me vi ser apenas mais uma na sua lista
Vi você feliz com aquela menina que você sempre quis 
Você conseguiu a perfeição?

Não quero lembrar de nada disso 
Você já está morto e enterrado
Então porque 
Um perfume num estranho no ônibus 
Desperta tudo isso 
Acaba comigo 
Faz você levantar do túmulo
Tantos anos depois?

Entorpecente


Eu entendo perfeitamente.
Você precisa colocar tudo no zoom máximo 
Explicitar, abrir a mente 
Eu entendo totalmente.

Eu já vivi assim uma vez 
É o tipo de coisa que consome e você torce para não sobrar mais nada.  
É o tipo de coisa que vira a cabeça,
Torce a razão, 
Entorpece os sentidos. 
E eu precisava sim, ilustrar todas as partes 
Colocar tudo no zoom máximo 
Registrar tudo, criar a imagem perfeita pra lembrança que seria criada pela minha mente depois 
Eu passei por isso.
Mais de uma vez.
E até hoje não sei se é algo bom. 
Até hoje não sei se sou melhor sem isso
Ou pior.  
Naquela época não queria saber de mais nada 
E hoje não consigo entender.

O amor
O amor sentido por cada parte da epiderme 
O amor ocupando cada canto do seu cérebro 
O amor do jeito que ele é
Louco...
Exige que tudo esteja no zoom máximo 
E cada coisa - olhos, nariz, boca, ouvidos, mãos - seu corpo inteiro precisa 
Ser capaz de visualizar claramente todos esses zooms que provocam tontura 
Mas não causam desmaio.

Já me senti assim uma vez. 
Algumas. 
Até hoje não sei se sou melhor sem isso 
Até hoje não entendo a complexidade de tudo isso 
Não sei nada 
E não é de hoje.
Mas entendo a necessidade de explicitar para que cada coisa possa ser sentida.
Eu ainda sou um pouco assim. 
Eu ainda sou muito perdida. 
Você entende totalmente, tenho certeza.
A gente se entende.

sábado, 19 de dezembro de 2015

Lembranças de calor

Aqueles dias que eu não aguentava nem minha cama e dormia no chão 
Porque nada me refrescava mas o piso frio aliviava.
Aquelas tardes em que eu passava tanto tempo deitada no chão, pensando em nada 
Quase dormindo, ouvindo o barulho dos galhos das árvores indo e vindo 
Apenas um vento quente, que me obrigava a ficar no chão.  
Nem mesmo carros passavam.  

Lembro dos meus três anos e as fotos de fralda e talco
Minha mãe me deixando com pescoço de fantasma pra não dar brotoeja 
Eu indo e vindo, correndo e gritando 
Suando sem parar.

Lembro das brigas dos meus pais e de como tudo era caótico 
Aquelas noites de delegacia, aqueles dias de tribunal.
Meu avô voltando da padaria com um monte de coxinhas 
Eu pulando o muro pra ir pra casa dele,
Queimando os pés descalços quando alcançava o chão.

As tardes depois da escola,
Caminhos mais longos pra casa, apenas pelas sombras das árvores.
Eu indo e vindo,
Eu correndo,
Eu deitada,
Eu reclamando,
Eu pensando,
Eu ansiando,
Pelo futuro,
Querendo estar em dias que não aqueles.

E depois aqui, querendo voltar 
Pras minhas tardes de bacia de abacaxi 
Sentada no chão frio 
Na casa dos meus avós
Pensando num futuro completamente diferente 
Do que eu tinha naquela época.

Hoje tenho vontade de voltar 
Pra aqueles dias de calor fervente 
Infinitamente menos complicados do que esses. 
Talvez eu tenha nascido para cantar o passado 
E ansiar pelo futuro 
Em todas as épocas de calor fervente
Nos registros da minha vida. 

sábado, 5 de dezembro de 2015

Adeus, tempo


Nessa primavera chuvosa 
Tenho tido mãos de falta de tempo. 
Sinto falta do meu esmalte vermelho, 
de sentir a maciez de antes. 
Sinto falta de ter tempo, 
Sinto falta de não sentir falta de ter tempo.

Nesse corrido momento da minha vida 
Em que meus dias são de muita chuva e ventania 
Pouco sono e muito texto 
Muita persistência e agonia 
Sinto falta de mim.
Já existe um certo tempo
Em que não tenho mais tempo de me olhar no espelho. 
Não tenho tempo de me maquiar para o meu prazer 
Não tenho tempo de usar uma folga pra ficar deitada sem fazer nada... 
Sobram-me poucos prazeres nesse tempo louco.

Mas esses poucos prazeres que me restam 
São momentos de muita gratidão
Nesses momentos consigo me sentir um pouco mais inteira novamente 
Consigo me sentir eu.
Ainda tenho o café 
Ainda tenho a música alta nos fones... Quando consigo ir sentada pra faculdade na janela do ônibus. 
Ainda tenho o vento da van quando estou indo pro trabalho. 
Tenho também conversas aleatórias com velhos senhores e senhoras 
Nos ônibus da vida.
Tenho minhas longas conversas por telefone com o meu pai, 
As fotos que minha mãe envia pra me dizer que tudo está bem,
Uma visita pros meus avós com histórias repetidas 
As lembranças da vida com os meus irmãos,
Os poucos amigos que faço toda questão de manter.
Tenho a sensação de ser útil, 
E a certeza de que hoje é sexta e amanhã poderei dormir até tarde. 
Será melhor, 
Mesmo que hoje não tenha sido melhor do que ontem.

E, com certeza, ainda tenho o grande prazer de conseguir escrever 
No meio desses meus tantos atrasos, correrias, desesperos, aflição, preocupação... 
Eu tenho a poesia pra me dar um momento de calma 
E pra me dar ânimo pra viver minha vida,
Que de vez em quando me parece tão fora de controle 
E tão distante do que eu já quis um dia.  
Eu tenho, tenho sim 
Tenho sorte da poesia não ter ido embora de mim
Nesse tempo em que tantas coisas e pessoas se despedem...
Ela continua fiel a mim.